A rotina e a repetição são muito importantes, principalmente na primeira infância! Esse deveria ser um mantra para educadores e famílias, todavia, o que ocorre na maioria das vezes é apenas um mantra escolar reducionista… Rotina e repetição não precisam estar a serviço de uma padronização de comportamentos ou de uma rigidez educacional pouco criativa, quando é possível equilibrar a necessidade de continuação e permanência com a necessidade de inovação e experiência.
Mais ou menos 200 anos antes de Maria Montessori iniciar sua experiência propriamente pedagógica, o filósofo John Locke já buscava compreender o entendimento humano e concluía que nossa mente, de forma mais intensa na infância, é como uma página em branco. Ao longo da vida, recebemos diversas impressões oriundas das experiências que temos e aos poucos se constitui nosso arcabouço intelectual, ou seja, nossa capacidade de compreender qualquer assunto e agir a partir do que sabemos. Muito antes de John Locke, o filósofo grego antigo Aristóteles ressaltava que o hábito, estreitamente ligado as experiências e formas de vida, se configuravam desde o nascimento até a vida adulta tornando-se a base do nosso caráter, influenciando em todas as nossas decisões e habilidades. Em outras palavras hábitos bons, caráter bom. Nesse sentido nossas práticas diárias influenciam quem seremos na fase adulta, tanto no sentido intelectual, quanto no sentido ético e até em questões de vida prática. Hoje sabemos que desde a gestação já estamos registrando informações e como Montessori sabiamente já indicou em sua época, possuímos sempre de antemão algo de original, a folha nunca está totalmente branca…
Tanto a neurociência atual quanto a psicologia dão continuidade as essas ideias e sustentam que cada nova experiência que a criança vive demanda dela muita energia física e mental, uma vez que ela percebe detalhes em um número absurdo de informações.
Durante toda a primeira infância essa percepção ampliada preenche nossa “página quase em branco”. Porém, ao mesmo tempo em que isso é positivo e nos fornece recursos, também pode ser extremamente perigoso e angustiante, especialmente quando não há tempo para assimilar tantas informações. Estaremos diante de uma criança em estado de estresse quando ela não encontrar no mundo referências sólidas, que se mantém e se repetem, que lhe permitam sentir segurança. Imagine-se recebendo informações complexas o tempo todo, ao mesmo tempo vivendo uma vida onde tudo é imprevisto, flexível, inconstante. Além de sentir-se perdido, você provavelmente terá de se preparar para qualquer situação possível no futuro, tudo isso enquanto sequer compreendeu claramente o que está acontecendo no presente.
Maria Montessori se referia a mente da criança como “mente absorvente” e acrescentava que ela busca nos adultos mais próximos, além de no ambiente, as referências para organizar informações e se resguardar da angústia do imprevisto. Por conseguinte, indicava a necessidade de um ambiente organizado, onde os itens de importância diária tivessem seu lugar fixado para que a criança pudesse observar, memorizar e encontrar aquele objeto caso precisasse ou simplesmente para sentir que estava no mesmo lugar como se pensasse: “…nada mudou …estou segura”. No mesmo sentido, o adulto referência precisa manter algumas orientações e comportamentos “em um mesmo lugar” para que a criança possa observar, memorizar e utilizar como referência para o exercício da sua liberdade, sentindo que pode confiar.
Aquela frase popular “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” é um contrassenso, as crianças irão repetir o que você diz e o que você faz como se você fosse um filtro que ela usa para decidir que experiências viver, que caráter e valores conservar… Seus exemplos serão repetidos no cotidiano e alguns se tornarão hábitos que influenciarão profundamente a saúde física e mental desse ser humano.
Não há divisão possível entre cidadãos e sociedade, logo, o conjunto dos hábitos comuns também se refletirá na identidade coletiva constituída por essas pessoas. Para confirmar isso, basta observar a forma como a maioria dos indivíduos se relaciona com sua cidadania, diante da dificuldade de assimilar a quantidade de informações e ter segurança sobre o futuro inicia-se a busca desesperada por uma referência sólida de valores para seguir. Muitos estudiosos indicam que esse comportamento é fruto da soma de uma educação rígida com a cultura do laissez-faire, muito forte no final da década de 80 e atualmente. Nesse contexto, crianças com muitas opções e informações foram educadas por famílias, que por terem sofrido com o autoritarismo, não ofereciam estabilidade de valores/regras deixando-as agirem sempre segundo o princípio do prazer. Com medo de fazê-las sofrer por falta de respeito e liberdade acabam por incentivar comportamentos intolerantes de seres incapazes de praticar empatia e cidadania. Muitas dessas crianças são adultos que buscam, hoje, no ‘governo’ a estabilidade, a orientação e até os limites que não receberam; fenômeno observado nos pedidos por intervenção militar.
Como criamos um hábito? Praticando repetidamente um mesmo comportamento, seguindo uma rotina e com isso registrando em nossa mente que esse é o modo adequado de viver a vida. Em determinado momento, não é mais necessário esforçar-se para agir segundo o exemplo, o hábito torna natural os comportamentos rotineiros. Acontece que se os hábitos se configurarem de uma maneira rígida, para além de necessidades básicas, o sujeito tende a se tornar pouco criativo e fechado para novas ideias. Por isso, é tão importante buscar o equilíbrio.
Balanceando as práticas cotidianas conseguimos manter a rotina que organiza, ou seja, aquela que não produz rigidez mental e emocional, como horário de dormir, acordar, a hora de fazer as refeições, as leituras diárias, a manutenção de princípios de conduta cidadã, o cuidado com o ambiente em que vivemos, com nossa saúde física e mental, os diálogos reflexivos, beber água, jogar lixo no lixo, etc… A rotina que organiza precisa ser mantida e repetida para que se torne um hábito saudável.
É em um ambiente de estabilidade que nos sentimos seguros para inovar, criar e até mesmo repensar certas práticas com autonomia, ou seja, sem precisar de um script moral e punição constante para saber como agir. Para que nossa necessidade de segurança não se torne um empecilho, principalmente para nossa capacidade de autoanálise e crítica da realidade, é necessário que desde a infância os sujeitos encontrem estabilidade e alguma possibilidade autonomia. Com a estabilidade oferecendo a base organizadora e a autonomia permitindo a liberdade real, podemos explorar novos caminhos, dentro de limites determinados pelo respeito ao outro, a si mesmo e ao meio ambiente, sem apelar para extremos, sabendo manter tudo o que de bom já conquistamos enquanto indivíduos e humanidade.
*Laina é diretora da Cataventura Escola Infantil, graduada e mestre em filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).