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Violência infantil: a responsabilidade também é nossa

Violência infantil: a responsabilidade também é nossa

Há pouco tempo, historicamente falando, as crianças deixaram de ser consideradas apenas miniaturas de adultos. Em uma pesquisa básica é possível verificar pinturas — especialmente do séc. XV ao séc. XVIII — de crianças vestidas com trajes de adulto, que lhes impunham a impossibilidade de movimentos e atividades hoje consideradas como tipicamente infantis. Já entre as crianças mais pobres, tal similaridade tinha como resultado principal o trabalho infantil e a falta de proteção. Essa igualdade entre adultos e crianças, que antes poderia significar respeito, vem sendo modelada conforme a conveniência do lado mais forte, que trata como igual na hora de lhe atribuir deveres e como diferente na hora de lhe atribuir direitos.

De fato, nossa civilização ainda está aprendendo o que significa “dignidade infantil”. No Brasil, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem apenas três décadas e, diante de país absurdamente mais antigo, é certo que as pautas de proteção à infância ainda são parte de uma luta diária. Isso porque boa parte da população desconhece as necessidades específicas da criança e que, por conta de uma profunda ignorância, deixa com que esses seres tão importantes apenas sobrevivam sujeitos a um número imenso de violências.

Em um primeiro momento, podemos nos sentir impulsionados a julgar os casos de negligência que conhecemos. Essa indignação é perfeitamente compreensível. No entanto, quando uma criança é vítima de violência toda a sociedade deveria sentir-se — mesmo que um pouco — responsável, uma vez que falamos de seres totalmente vulneráveis à violência dos adultos e que estes são, em muitos casos, familiares próximos. Assim, fica claro que é dever de toda a sociedade e, principalmente, do Estado garantir os meios necessários para que a infância seja um espaço e tempo de dignidade. Ao zelar pelo desenvolvimento de uma criança também zelamos pelo amadurecimento da humanidade e ao nos mantermos calados quando elas não estão protegidas contribuímos para a manutenção do ciclo de violência.

Quando esses meios sofrem com descaso, existe uma tendência de que todos sejam afetados, direta ou indiretamente. Não é à toa que tantos adultos se sentem no direito de agredir crianças. Durante o ano de 2019, segundo dados oficiais, o Disque 100 contabilizou 86.837 denúncias de violação sexual contra crianças e adolescentes, o que representa 55% do total de denúncias recebidas pelo número. A maior parte dos agressores são homens entre 25 e 59 anos. O poder sobre o mais vulnerável é uma marca do modus operandi de uma cultura que está longe de ser civilizada. As marcas visíveis chocam, mas são vestígios temporários de um crime contra a humanidade, assim como a visibilidade que tais crimes ganham e logo são substituídos por um novo assunto urgente.

as marcas invisíveis naquele que é violentado passam quase despercebidas, muito embora continuem ali, abertas e doloridas, pela vida inteira. São os efeitos não vistos. Essa dor cotidiana de quem sofreu com atos absurdos continuará presente no resultado de cada ação desse ser que foi tratado com selvageria e ignorado por todos nós. É assim que o ciclo se perpetua. Na maioria das vezes, quem sofre violência tende a reproduzi-la com outros e/ou consigo mesmo.

Diante do caso da criança de 10 anos, violentada e grávida, podemos observar uma sociedade de dedos apontados — quase que em um impulso desesperado para negar sua conivência cotidiana com as negligências que afligem milhares de crianças todos os dias, em todos os os lugares. Nossa sociedade está dividida: o aborto é uma discussão polêmica; o abusador sem sombra de dúvidas cometeu um crime terrível.

Entretanto, a triste realidade é que não será possível eliminar nem o debate, nem o desacordo ou mesmo voltar no tempo para evitar o crime cometido, o que muitas vezes parece nos discursos, ser mais importante para as pessoas, que pensar em estratégias de acolhimento. Precisamos, neste caso pensar na redução dos danos, em apoiar a menina, uma criança com uma história lamentável e em impedir que agressores tenham liberdade para repetir o ato.

Durante séculos o corpo e a alma da criança serviram de depósito de projeções dos adultos, que mal tinham superado as dores da sua própria infância. Elas serviram de apoio para cidadãos que não possuem os recursos básicos para a civilidade. Como diria a célebre estudiosa da infância Françoise Dolto, em seu livro A Causa das Crianças: “Se a fome no mundo, a guerra, a exploração da mão de obra, a prostituição, os tráficos de todo o tipo tocam os homens mais veneráveis, isso significa que a infância é a menos poupada por esses ‘flagelos’. Pesquisamos, apelamos para os direitos do homem, inauguramos o ano da infância. Boas obras, belos discursos, denunciamos os carrascos das crianças, os Minotauros do século, os bichos-papões tecnocratas… A verdade é que fronteira entre as crianças ricas e as deserdadas, entre as mimadas e as esmagadas, é arbitrária e enganosa, impedindo as reações de defesa da sociedade. Procuremos, portanto, o denominador comum da infância: tanto o bem alimentado como o mal alojado, o escolarizado, o pequeno chefe e o pequeno escravo não são tratados como pessoas”. A sorte que é reservada às crianças depende da atitude dos adultos e, se duvidamos dessa quase inconsciente desvalorização da infância, é por falta de observação. A banalização das crianças moradoras de rua é um exemplo amplamente acessível.

Se não há remédio que realmente cure o que já passou, se diariamente nos deparamos como histórias de infâncias perdidas, o que podemos fazer de realmente significativo pelas crianças que ainda sofrem? O que podemos fazer para evitar que mais crianças venham a sofrer? Desejo mais que qualquer outra coisa — especialmente quando considerado o pequeno espaço de diálogo e aprofundamento deste artigo — que possamos aprender algo com essas tragédias: todos somos agentes de proteção à infância e todos somos responsáveis pela sociedade na qual vivemos.

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