No livro “O Segredo da Infância”, Montessori dedica um capítulo à criança professora. Tão lindo quanto ler e dizer a ‘criança professora’ é perceber que colocar a criança no centro dos nossos planos inverte a lógica de valores com a qual estamos habituados. Um exemplo claro desse efeito é a organização escolar que não tem como guia o calendário ‘adulto’, ‘comum’ ou ‘comercial’ na hora de organizar o tempo. Na Cataventura o planejamento acontece a partir das necessidades da criança, não do calendário comum, criando um reduto onde tudo funciona a partir do que uma criança precisa para se desenvolver de maneira segura e integralmente saudável.
Geralmente, nós (pais e mães) ao planejar o ano levamos em consideração as datas comemorativas por conta dos feriados, mas, também por conta das comemorações, demonstração de afeto e presentes envolvidos. As escolas em geral fazem o mesmo, acrescentando ao planejamento pedagógico a confecção de presentes e por vezes até apresentações das crianças para as famílias e sociedade. Porém, quando é assim, quem está sendo a referência de organização de nossas vidas? E, principalmente qual a referência para a demonstração do nosso carinho? Além de, em muitos casos, nos restringirmos às datas comemorativas para homenagear e/ou agradecer às pessoas, também determinamos como principal forma de demonstração de afeto o ato de presentear com objetos comprados. Apesar de nós adultos dedicarmos atenção e realizarmos gestos genuínos (que vão além da obrigação) nestas situações, tudo isso ainda não faz sentido para a criança. Elas podem até produzir um cartão, um cartaz, um mimo e os pais ficarem emocionados, mas, sejamos honestos em admitir que essa demonstração não partiu da criança.
Como escreveu Maria Montessori “A substituição da criança pelo adulto não ocorre somente quando este age no lugar dela, mas pode ocorrer também quando ele infiltra a própria vontade na criança, substituindo a vontade dela pela sua. Então não é mais a criança que age, mas o adulto que age na criança” (2019, p.109). Muitas vezes os presentes são produzidos pela prof ou por empresas, raramente levando alguma marca real da criança, muitas celebrações tem apenas uma função comercial. É possível diferenciar datas comemorativas que nos contam sobre pessoas ou situações que precisam ser lembradas como marcos históricos ou que nos convidam a refletir sobre prevenção de doenças, ou ainda que nos incentivam a valorizar profissionais que se dedicam a tornar o mundo um lugar melhor e aproveitar as datas para compreender aspectos da nossa cultura. Mas, para fazer isso e ao mesmo tempo respeitar precisamos observar, precisamos refletir: qual o valor da demonstração de afeto que parte da iniciativa de outra pessoa e qual a finalidade dos espetáculos nos quais as crianças são envolvidas? Até que ponto podemos pautar a educação em fatores externos e muitas vezes indiferentes ou que não priorizam o desenvolvimento infantil? Os temas são significativos para as crianças, ou temos outras prioridades mais elementares a serem oportunizadas?
A criança, comumente considerada muito sincera, mostra diariamente seu afeto ou a falta dele, nos mostra em comportamentos, olhares e preferências o que realmente importa. Para a criança é muito mais importante atenção verdadeira, olhos nos olhos, paciência, respeito, escuta, brincar junto, que qualquer brinquedo da loja cartão ou apresentação. Tanto é que brincam muito mais com objetos da natureza do que com os brinquedos plásticos e quase sempre movidos pilha.
Faz sentido privar a criança da ludicidade, da espontaneidade, da tranquilidade de descobrir o mundo admirando-o, para que ela fique durantes horas repetindo movimentos que serão apresentados em 15 minutos no final de algum dia cansativo? Faz sentido presentear nossos filhos com objetos que mais nos afastam do que nos aproximam?
O caminho para a demonstração de afeto, real e verdadeiro, é o adulto preparado que auxilia a criança, vendo-a como um ser de importância, como um ser único, como uma criança professora, que deve ter seus sentimentos validados, sua saúde protegida, seu ambiente estruturado para que possa ter segurança e desenvolver autonomia. Uma criança vista e compreendida no seu modo de ser, que pode contar com a paciência e respeito na hora de receber as orientações necessárias é uma criança amada, profundamente, por isso, pelo exemplo, será também capaz de amar e respeitar com os gestos mais lindos.
Com autonomia e liberdade, quando estiver claro para eles o que eles sentem e quem eles são eles irão demonstrar, espontaneamente, o amor que eles sentem, diariamente. A partir disso, eles vão ter o desejo real e genuíno de levar um presente para o pai ou a mãe. Como acontece quando uma criança colhe uma flor para presentear ou faz um desenho e entrega a alguém especial.